A brincadeira é o eixo do currículo na Educação Infantil, o que reforça a importância das reflexões sobre o corpo, a interação e as possibilidades de criação entre as crianças, elementos fundamentais que constituem essa atividade humana.
Porém, não podemos pensar nas brincadeiras que acontecem no contexto educativo sem considerar a diversidade e pluralidade de modos de ser, estar e vivenciar o cotidiano nestas instituições. Em todos os âmbitos, nos diferentes capitais culturais e sociais existentes, nos variados modos de aprender e se desenvolver, nas crianças que são público-alvo da educação especial (PAEE), para todos e todas que se encontram dia a dia na Educação Infantil, fica a pergunta:
Como acontece o brincar e a brincadeira na diferença? Como esses momentos potencializam o desenvolvimento e a aprendizagem de todas as crianças?
Para respondermos essas perguntas, é necessário realizar uma reflexão sobre três pontos fundamentais: a questão das diferenças, o que diz a Legislação educacional Inclusiva, que engloba a Educação Infantil e a importância do brincar.
Como mostra Carneiro (2012), é na Educação Infantil que “a criança pequena, ao adentrar em um espaço escolar em que as diferenças são bem-vindas, vai aprender de forma natural a valorizar o outro por aquilo que ele é, que é capaz de realizar” (p.93). Carneiro (2012) aponta ainda a necessidade de “[…] estruturação da Educação Infantil para o atendimento dos alunos com necessidades educacionais especiais proporcionando-lhes oportunidades de desenvolvimento pleno do seu potencial, considerando suas especificidades” (p. 86)
Ao falarmos de Educação Especial Inclusiva, ou seja, ao atendimento das crianças com necessidades educacionais especiais, na escola comum regular, muitos desafios aparecem, tais como: falta de formação continuada dos professores, bem como a falta de apoio e informação da equipe gestora em relação às práticas inclusivas.
Porém, considerando a questão de abertura desse texto, de que o brincar deve nortear os planejamentos na Educação Infantil, faz-se necessário refletir sobre como essa atividade, entendida em todo seu potencial e complexidade, pode, por si só, ser altamente inclusiva! E é exatamente sobre isto que discutiremos neste artigo.
O que traz a Legislação sobre a Educação Inclusiva na Educação Infantil?
Ao buscarmos na legislação vigente a Educação Inclusiva na Educação Infantil, são poucos os documentos oficiais que abordam de uma maneira mais profunda a temática. A maioria traz de uma maneira superficial, muitas vezes, apenas citando a Educação Infantil como obrigatória a partir dos 4 anos e pertencente ao Ensino Básico (juntamente com o Ensino Fundamental I).
Começando pelo principal documento nacional, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), coloca no art. 205 que a educação é um direito de todos e no art. 208, inciso IV, afirma que é dever do Estado a garantia da Educação Infantil, creche e pré-escola, das crianças de até 5 anos. Outro documento que traz sobre a garantia também como dever do Estado é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/ 1990), no art. 54, inciso IV, prescreve o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB/ 96), a Educação Infantil é definida como a primeira etapa da Educação Básica, oferecida em creche (0 a 3 anos) e pré-escola (3 a 5 anos), sendo um direito e cuja finalidade é desenvolver a criança de modo integral, nos aspectos físico, psicológico, intelectual e social. Neste documento há no capítulo V, que abrange a Educação Especial, no art. 58, parágrafo 3º, a oferta dessa, devendo cobrir a faixa etária de zero a seis anos, durante a Educação Infantil.
A Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994) é um documento relevante para a Educação Inclusiva, que também traz a questão da Educação Infantil, e no art. 50 dispõe sobre a integração das crianças PAEE mostrando que essa “[…] seria mais efetiva e bem-sucedida se consideração especial fosse dada a planos de desenvolvimento educacional nas seguintes áreas: educação infantil, para garantir a educabilidade de todas as crianças […]” (p. 75).
Com relação às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), o inciso VII, do §1º, artigo 8º, da Resolução CNE/CEB nº 05/2009, traz que as propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil devem prever condições para o trabalho coletivo e para a organização de materiais, espaços e tempos que assegurem “a acessibilidade de espaços, materiais, objetos, brinquedos e instruções para as crianças com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2013).
Nesse documento específico de Educação Infantil, essa é a única parte em que há referência às crianças PAEE. Se analisarmos com cuidado, podemos reparar que é colocado de maneira abrangente sobre a Educação Inclusiva, ou seja, fala de um modo geral sobre a acessibilidade aos espaços e objetos ao redor, assim como sobre a ajuda que deve ser ofertada para essas crianças.
Partindo para documentos voltados à Educação Inclusiva, a Educação Infantil aparece em alguns deles, referenciado como “em todos os níveis educacionais”, como mostram os exemplos abordados na sequência.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2010a), cujo artigo 24, relacionado à Educação, logo em seu primeiro artigo afirma que os Estados Partes assegurarão o “sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda vida, […]”. Esse é um exemplo de como a Educação Infantil não aparece como parte da educação básica, nem a idade que abrange esse atendimento é citado em tal documento, acabando, então, por abranger a educação de um modo geral.
O documento que mais discutiu sobre a Educação Infantil, foi a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE-EI; BRASIL, 2008). Este, coloca como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem do público-alvo da Educação Inclusiva, através da orientação às escolas regulares para garantir a “transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a educação superior”. Além disso, o artigo VI, ainda esclarece que:
O acesso à educação tem início na educação infantil, na qual se desenvolvem as bases necessárias para a construção do conhecimento e desenvolvimento global do aluno. Nessa etapa, o lúdico, o acesso às formas diferenciadas de comunicação, a riqueza de estímulos nos aspectos físicos, emocionais, cognitivos, psicomotores e sociais e a convivência com as diferenças favorecem as relações interpessoais, o respeito e a valorização da criança.
Do nascimento aos três anos, o atendimento educacional especializado se expressa por meio de serviços de estimulação precoce, que objetivam otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem em interface com os serviços de saúde e assistência social. (p.12)
Sob orientação da LDB/96 para a educação de criança PAEE, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) elaborou, em 2001, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), Estratégias e Orientações para a Educação de Crianças com Necessidades Educativas Especiais (BRASIL, 2000). Nesse documento, a educação das crianças de zero a seis anos é colocada sob responsabilidade da escola. Assim, as creches e pré-escolas passaram a fazer parte da primeira etapa da educação básica. O texto mostra a importância de se criar uma escola em que todas as necessidades sejam atendidas desde o início e também enfatiza a importância da Educação Infantil.
No item 5.1, há as orientações para as creches e pré-escolas para o atendimento das crianças PAEE, em que é necessário:
Disponibilizar recursos humanos capacitados em educação especial/ educação infantil para dar suporte e apoio aos docente das creches e pré-escolas ou centros de educação infantil, assim como possibilitar sua capacitação e educação continuada por intermédio da oferta de cursos ou estágios em instituições comprometidas com o movimento da inclusão;
Realizar o levantamento dos serviços e recursos comunitários e institucionais, como maternidades, postos de saúde, hospitais, escolas e unidades de atendimento às crianças com NEE [Necessidade Educacionais Especiais], entre outras, para que possam constituir-se em recursos de apoio, cooperação e suporte;
Garantir a participação da direção, dos professores, dos pais e das instituições especializadas na elaboração do projeto pedagógico que contemple a inclusão;
Prover a sensibilização da comunidade escolar, no que diz respeito à inclusão de crianças com NEE;
Promover encontros de professores e profissionais com o objetivo de refletir, analisar e solucionar possíveis dificuldades no processo de inclusão;
Solicitar o suporte técnico ao órgão responsável pela Educação Especial no estado, Distrito Federal ou no município, como também ao MEC/SEEP;
Adaptar o espaço físico interno e externo para atender crianças com NEE, conforme normas de acessibilidade. (BRASIL, 2000, p.24–26)
Em 2010 ainda, o Conselho Nacional de Educação (CNE) promulgou novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN), em que “a inclusão, a valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade” (BRASIL, 2010b).
Outro documento importante para a inclusão é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI ou Estatuto da Pessoa com Deficiência). O capítulo IV discorre a respeito “Do Direito à Educação”, porém, novamente de maneira abrangente, como consta no Art. 28, inciso I: “sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” (BRASIL, 2015, grifo nosso)
De acordo com o que foi posto na legislação existente, a questão da Educação Infantil é colocada de uma forma mais superficial e com menos detalhes do que o restante do período educacional, garantindo, ao menos, sua oferta para as crianças de zero a seis anos. O PNEE-EI, além de discutir a respeito dessa questão, tematiza, inclusive, o atendimento educacional especializado na Educação Infantil, explicando o que é e qual o objetivo desse serviço com crianças até 3 anos.
O brincar na diferença
A brincadeira, quando valorizada e considerada um momento potente de aprendizagem, desenvolvimento, produção e reprodução de culturas, ganha uma atenção no contexto educativo a tudo que é dito e não dito, ao que se expressa pelo corpo, pelos gestos, pelas ações, pelo olhar, pelas risadas e emoções, o que por si só se opõe ao modo padronizador e cerceador historicamente presentes nas práticas educativas. Na brincadeira, há espaço para as individualidades, para o imprevisível, para a comunicação por múltiplas linguagens e para os muitos modos de ser.
Quando há espaços, tempos e materiais pensados para que a brincadeira de fato aconteça, além de um olhar que valorize e entenda essa dimensão humana em toda sua profundidade, os corpos brincantes partilham uma cultura lúdica, com as surpresas e imprevistos desta comunicação tão aberta e inclusiva: todos e todas, com seus modos de ser e estar, compartilhando das experimentações e sensações próprias da brincadeira.
As instituições educativas são, por excelência, locais de encontros entre as crianças e lugares privilegiados para brincar junto. Para isso, faz-se necessária uma abertura para o inesperado, para as possibilidades diversas, para a criação que nasce da relação: com o outro, com o objeto, com os espaços. Todos e todas, com suas potencialidades, limitações e individualidades, têm direito à brincadeira.
Cabe aos adultos, profissionais da infância, colocarem-se no lugar de pesquisadores de sua prática, de observadores de quem são, todas e cada uma, as crianças com que eles se encontram no cotidiano das instituições educativas. Serão elas as referências, o caminho para planejar, reinventar, possibilitar e enriquecer as infinitas possibilidades das crianças, com ou sem deficiência, com ou sem necessidades educacionais especiais, de viverem suas brincadeiras e infâncias em toda sua plenitude.
Referências:
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Diário Oficial da União, 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília: Diário Oficial da União, 23 de dezembro de 1996.
BRASIL. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 1994.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.
BRASIL. Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Brasília: MEC / SEF, 1998.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmera de Educação Básica. Parecer nº 7, de abril de 2010. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Diário Oficial da União. Brasília, 9 de julho de 2010. (2010b). Disponível em: <http://pactoensinomedio.mec.gov.br/images/pdf/pceb007_10.pdf> Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.
BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=1669 0-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192 > Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.
BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo: Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. 4ª Ed.,Rev. e atual. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010a
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013
BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão – Estatuto da Pessoa com Deficiência: Lei federal nº 13.146, de 6 de julho 2015. Brasília, 2015
CARNEIRO, Relma U. C. Educação Inclusiva na Educação Infantil. Práxis Educacional. Vitória da Conquista/BA. v.8, n.12, jan. /jul. 2012. pp. 81 – 95.
PEREZ, Beatriz Brunaldi. Educação Infantil Inclusiva: A corporeidade e o brincar na diferença. 2018. 152p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.